13 de Agosto de 2018
Instruções sobre educação financeira coladas na parede, reproduções de obras de arte, pastas com exercícios de português, jogos de percepção visual, microscópios, tintas, telas e cavaletes. O que parece o cômodo de uma escola é, na verdade, a sala de estar do apartamento de Valentina Miranda Paiva, de 4 anos, que vive em Nova Lima, na Grande BH.
O espaço se transformou em um verdadeiro local de estudos. Ao contrário das crianças da mesma idade, a menina não vai à escola: é educada pela própria mãe. Tirar os filhos das instituições e ensiná-los em casa é opção adotada, atualmente, por pelo menos 900 famílias mineiras. O homeschooling, ou educação domiciliar, é praticado por pais que buscam estimular o autodidatismo e não creem que o colégio seja a melhor alternativa para o aprendizado.
As famílias justificam a escolha alegando questões sociais, religiosas, políticas, econômicas e crenças pessoais. O assunto é polêmico e divide opiniões de estudiosos, tanto sob o aspecto jurídico quanto pedagógico.
Hoje não há legislação que autorize, proíba ou regulamente o tema no país. No Supremo Tribunal Federal (STF), um recurso para julgar a situação deverá ser analisado até o fim do ano, o que pode colocar fim à discussão. “Esta é uma grande lacuna no organismo jurídico brasileiro. Não há nenhum dispositivo concedendo nem impedindo expressamente o homeschooling", afirma o presidente da Comissão de Assuntos Estudantis da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB–MG), Cristiano Volpe.
Direito e dever
Conforme a Constituição Federal de 1988, a educação é um direito de todos e um dever do Estado e da família, o que, ressalta o especialista, abre margem para que pais ensinem os próprios filhos. No entanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) obriga a matrícula das crianças na rede regular de ensino. “Não há uma definição concreta”, frisa o advogado.
Pedagoga e professora da Faculdade de Educação da UFMG, Lívia Fraga diz que o ECA é fundamental para assegurar o direito ao aprendizado. “A determinação é uma garantia de que os pais irão, sem falta, levar os filhos para os colégios e que eles terão acesso à educação. Flexibilizar seria um grande perigo à democracia”, critica.
Expansão
Além das 900 famílias mineiras, um estudo da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) mostra que há outras 7,5 mil em todo o país. A expectativa da instituição é a de que esse número chegue a 20 mil em dois anos, conforme o presidente, Ricardo Dias. “Ainda existem muitos pais (que promovem o ensino no lar) escondidos, talvez esperando uma regulamentação sobre o assunto”, diz.
Exemplo
As pessoas que escolheram tomar as rédeas na educação das crianças garantem valer a pena. Na casa de Aída Gomes Lana, de 37 anos, em Contagem, na Grande BH, qualquer cômodo é espaço do saber. “Tudo é motivo para estudar. Muitas vezes, achamos que é preciso estar sentado e olhando para um quadro. Mas, o ensino também acontece ao ler um livro, assistir documentários e criar histórias”.
Mãe de Agnes e Litza, de 9 e 5 anos, e de Otávio, de 5 meses, a educadora infantil deixou o ofício para cuidar dos filhos. Hoje, ela diz aproveitar principalmente os momentos no carro com as crianças para falar sobre separação silábica, rimas, produção textual e até matemática.
Agora, eles se preparam para conhecer a Orquestra Filarmônica no fim do mês. “Estamos ouvindo músicas clássicas, entendendo o som dos instrumentos. Peço a eles para adivinhar qual está sendo tocado. Vamos até produzir um pandeiro e um chocalho com material reciclável”, ressalta Aída Lana.
Homeschooling
No homeschooling não há tarefa de casa ou provas. No entanto, o progresso dos filhos é medido por meio de exercícios didáticos sobre os conteúdos abordados. Caso eles tenham dificuldade, os pais retomam o tema e explicam novamente por um período maior, até que o assunto seja dominado. Também há a possibilidade de fazer aulas com professores particulares para reforçar o aprendizado.
O ensino em residência não é caminho irreversível. Crianças e adolescentes que desejarem ingressar na escola têm essa oportunidade. As instituições devem apenas aplicar um teste de nivelamento para saber qual é o grau de intelectualidade dos futuros alunos, definindo a série adequada.
Além disso, é possível ter o diploma do ensino médio por meio do Exame Nacional para Certificação de Competência de Jovens e Adultos (Encceja). Assim, os adolescentes estarão habilitados para prestar o Enem.
Após problemas de adaptação em instituição, estudantes passam a ser ensinados pelos pais
Dentre as famílias educadoras há aquelas em que os filhos nunca frequentaram uma instituição de ensino. Porém, existem as que crianças e adolescentes foram matriculados, conviveram um período no ambiente e, depois, deixaram a escola para serem ensinados em casa. É o caso dos irmãos Bruno e Felipe Correa, de 16 e 14 anos. Em 2014, quando ainda estavam no colégio, em Contagem, os pais decidiram testar o homeschooling.
A decisão foi tomada porque Felipe não se adaptou nem fez amizades. Já o mais velho gostava dos amigos e era bom aluno, mas começou a ter problemas com uma professora. “Nos dias da aula dela, ele passava mal. Quando os dois viram que tinham a opção de estudar com a liberdade do ensino domiciliar fizeram essa escolha”, conta a mãe, Renata Correa, de 35. Com a saída deles da unidade de ensino, o irmão mais novo, Isaque, de 7, nem chegou a frequentar a escola.
Rotina
Os meninos estudam de uma a duas horas por dia. Eles leem livros, inclusive os didáticos, fazem pesquisa na internet e assistem a documentários. O aprendizado também é feito por meio de projetos.
Segundo Renata, quando os filhos se interessaram em um jogo de celular, ela separou duas semanas para ensiná-los a calcular ângulos e a fazer outros exercícios matemáticos a partir do aplicativo. “O objetivo do homeschooling é fazer a criança aprender sozinha, estimular o autodidatismo, porque queremos que eles queiram buscar e percebam o quanto é divertido aprender”, diz.
Assim como nas demais famílias, a mulher prepara os filhos para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Ela não descarta contratar professores particulares para os temas em que os meninos apresentam mais dificuldades ou colocá-los em um pré-vestibular.
Convívio diário com jovens da mesma idade no colégio é defendido por especialistas
A socialização de crianças e adolescentes que não vão à escola é um dos principais questionamentos em torno da educação domiciliar. Na instituição de ensino, eles convivem, diariamente, com jovens da mesma idade e de diferentes visões de mundo, defendem especialistas.
Segundo a professora da Faculdade de Educação da UFMG Lívia Fraga, membro do Grupo de Estudos Sobre Política Educacional e Trabalho Docente, o ambiente escolar amplia as experiências sociais e de participação ativa dos estudantes. Ela avalia ser difícil cravar, nesse sentido, se há perda para os que são educados no lar, mas critica a proposta, que afirma ser “de um profundo individualismo”.
Para a especialista, a criança pode estar privada dos valores de igualdade, justiça social, bem comum, democracia e distribuição. “As pessoas precisam aprender a tolerância com o outro, quais são os limites do respeito, como lutar por suas ideias e negociar na vida pública. Isso nos torna seres mais humanos”, afirma Lívia Fraga.
Alternativas
Por outro lado, as famílias educadoras defendem outras formas de assegurar a socialização dos meninos e meninas. “Levo meus filhos no parque, clube, supermercado, aula de circo. Eles sempre têm a iniciativa de puxar conversa com os outros”, conta Rose Miranda Paiva, de 37 anos, mãe de Valentina, de 4, e Nicolas, de 2.
A mulher afirma que o homeschooling, embora seja trabalhoso para os pais, garante qualidade de vida para a família e estimula os filhos a ter gosto pelo conhecimento. Valentina, inclusive, demonstra querer aprender a todo momento. Durante a visita da equipe de reportagem do Hoje em Dia, a garotinha pediu para observar insetos no microscópio, pintar um quadro e montar um jogo.
“Aprender tem que ser prazeroso. Se meus filhos me perguntam sobre como funciona o organismo da borboleta, é uma ótima oportunidade para estudarmos melhor os insetos. Não vou esperar para trabalhar esse assunto com eles em função de seguir um cronograma”, pontua.